Varal de Cordéis Joseenses

Contato: prbarja@gmail.com

(Sugestões de temas são bem vindas!)



domingo, 16 de agosto de 2015

CJ 58 - Uma História (de) Menor

O cordel joseense 58 traz uma narrativa ficcional que busca servir de ponto de partida para um debate a respeito da maioridade penal no Brasil.
        Arte da capa: Cláudia R. Lemes

Texto INTEGRAL do cordel:

Eu tenho 16 anos;
sempre fui pobre, é verdade.
Cheguei a ir para a escola
na Zona Sul da cidade,
mas na rua é que aprendi
sobre a tal maioridade.

Gostava muito da escola
e de futebol também.
Sou craque, modéstia à parte,
mas ver jogo não convém:
é muito caro o ingresso;
custa às vezes mais de 100...

Queria juntar dinheiro
também pra ajudar em casa.
Seu Ricardo é um cara grande
e, quando o aluguel atrasa,
ele grita com a gente:
“O barraco é meu, que brasa!”

O problema: eu sou pequeno,
fraco pra carregar peso.
Mas um dia me apontaram:
“Pula muro, sai ileso
 e tem cara de coitado, 
de pobre mesmo, indefeso!”

Pra fazer umas entregas
eu fui então contratado.
Recebia por semana
e fiquei aliviado:
ao fim de um ano, comprei
nosso barraco alugado.

Comecei a perder aulas, 
mas os jogos não perdia:
agora eu tinha dinheiro
e a todos eu assistia.
As entregas, que eram muitas,
Mudaram meu dia-a-dia.

Minha irmã tem 17;
É garota de programa.
Capitão e deputado
ela já levou pra cama
e um pastor a visitava
dizendo ”Jesus te ama”.

Todos eles preocupados
por ser negócio ilegal:
“Menor de idade é problema;
se pegam, vai ficar mal”
- mas acharam solução
pra seguir no bacanal.

Aprovaram redução
dessa tal maioridade:
“Agora a barra tá limpa,
vamos ficar à vontade
para curtir as meninas
dentro da legalidade!”

Alguns têm até interesse
comercial na questão...
Possuem motéis e bares:
mais lucro agora terão.
Vender bebidas aos jovens?
Agora eles poderão!

Eu seguia nas entregas
e um dia fiquei com medo:
“Agora eu posso ser preso?
 Digam pra mim, sem segredo!”
Com desprezo, então, meu chefe
me deu um sorriso azedo:

“Moleque, fica tranquilo!
 Falei com o presidente 
e ele foi compreensivo: 
aliviou para a gente. 
A redução não te pega. 
Só se matar um gerente...”

Falou e mostrou a arma
que levava na cintura.
O cara era meliante
desses fortes, linha dura.
Nessa hora, eu cometi
uma estúpida loucura.

Disse pra ele: “Tô fora!
Não vou mais fazer entrega.
Eu quero voltar pra escola!”
“Meu dinheiro não se nega! 
Vem aqui, moleque, eu vou
 te apresentar minha adega.”

Fomos pra um recinto escuro.
Tinha garrafas de vinho.
Ele serviu uma taça,
mas me disse: “Um minutinho!
 Entrei aqui com você,
porém vou sair sozinho!”

Naquele instante, o safado
apontou arma pra mim.
Fui mais rápido que ele
- eu tinha uma arma, sim!
Matei o cara ali mesmo,
mas esse foi o meu fim.

Os tiros que eu disparei
chamaram muita atenção.
Saí do local correndo,
mas não adiantou não:
em minutos, fui jogado
pra dentro de um camburão.

“Foi legítima defesa!”,
eu tentei argumentar.
“Preto e pobre não tem dessa!
 Moleque, cê vai mofar
 numa cela da cadeia,
 seu legítimo lugar.”

Daqui da cela eu escrevo.
Tô preso. Peço uma chance...
Eu quero voltar pra escola;
virar rapper é meu lance.
Tenho 1 sonho: que a justiça
no nosso país avance!




Paulo R. Barja

Um comentário:

  1. É muito bom participar de coisas lindas como este trabalho que diz não, de uma forma reflexiva e que problematiza a violência embutida e reproduzida na sociedade.

    ResponderExcluir