O cordel joseense 92 fala sobre as ghost bikes, as bicicletas brancas que são colocadas em pontos do espaço público para homenagear ciclistas que morreram vitimados por acidentes nestes pontos. O maior desafio, aqui, foi criar um texto que trouxesse lirismo sem perder a contundência, que falasse sobre duras verdades sem pesar demais e mantendo a nota de esperança. Espero ter conseguido... Seguem capa, contracapa e o texto completo:
A cidade é um território
bem repleto de disputas,
com muita gente indo e vindo,
rotinas por vezes brutas
onde a questão do transporte
é uma entre muitas lutas.
Deslocar-se por aqui
é um desafio gigante;
seja no meio da rua,
na calçada... a cada instante,
a atenção deve ser plena,
pois o perigo é constante.
Vamos falar, nestes versos,
de uma questão bem urbana.
O trânsito da cidade
é coisa que nos engana,
e que, além da engenharia,
tem dimensão muito humana.
As Ghost Bikes joseenses
serão aqui nosso assunto
mas, antes de prosseguir,
para vocês eu pergunto:
já viram as bikes brancas
pintadas, com flores junto?
Elas significam muito,
pois trazem emoção franca:
exposta sobre a calçada,
cada bicicleta branca
é uma vida interrompida
que o trânsito nos arranca.
Essa exposição aberta
quer ser lírica homenagem
às famílias e aos amigos
dos que fizeram passagem
ao plano pós-existência,
nessa mais longa viagem.
Sei que o tema é doloroso,
mas a conversa é devida
e essa questão urbanística
não pode ser escondida.
Lembro que falar da morte
também é falar da vida.
Cada bicicleta branca
que é na cidade instalada
simboliza uma existência,
sendo assim posicionada
no ponto exato onde a vida
de um ciclista foi roubada.
Há, pois, caráter simbólico
nessas brancas bicicletas,
elementos paisagísticos
que, em suas curvas e retas,
são intervenção urbana,
trazendo histórias completas.
Estas bicicletas brancas
existem no mundo inteiro:
Roma, Paris, Nova Iorque...
E nosso exemplo primeiro
tem a alma joseense e
paulistano paradeiro.
Juliana foi pra Sampa
com sua bike; faleceu
atingida por um ônibus;
na Paulista é que ocorreu
essa tremenda tragédia
que a todos nós abateu.
A “ciclovia da Andrômeda”
(a primeira, em São José)
homenageia Juliana,
exemplo de vida e fé
no poder das bicicletas
- quem usa, sabe como é.
Já em terreno joseense,
a ghost bike inicial
fica no Jardim Paulista,
ali na zona central,
onde o jovem Luiz Augusto
foi a vítima fatal.
Os próprios familiares,
com ajuda fornecida
por amigos e ciclistas,
instalaram a devida
homenagem que até hoje
é bem cuidada e mantida.
Na Zona Sul, outra bike
em urbana intervenção
lembra Roberta e Melissa,
mãe e filha, judiação,
colhidas e vitimadas
por infeliz caminhão.
Na Zona Leste, um tributo
a uma nobre moradora:
Marilene usava a bike
no serviço – vendedora
de cosméticos e exemplo
de mulher trabalhadora.
Na Zona Norte, Josias,
16 anos de idade,
o viaduto atravessava
rumo ao Parque da Cidade
- vitimado, é mais um anjo
de bike. Deixou saudade...
Um outro jovem, o Robson,
também teve esse destino,
falecendo aos 19
por conta de um desatino:
rapazes fazendo racha
vitimaram o menino.
Rosival, lá de Alagoas,
veio para trabalhar
e estava feliz: de bike,
conseguiu trabalho achar,
porém foi atropelado
no dia de começar.
Ariel, de 36,
morava na Zona Leste;
trabalhava no Jardim
das Indústrias, Zona Oeste.
Hoje é outro anjo ciclista;
que nosso poema ateste.
O Marcos, de 37,
ia a Campos do Jordão;
na altura de Tremembé,
foi atropelado e não
resistiu aos ferimentos,
o que gerou comoção.
Na Estrada do Jaguari,
Zona Norte, área rural,
mais um caminhão gerou
outra vítima fatal:
morreu Nezinho, de bike,
sem ter feito nenhum mal.
E a ghost bike da Avenida
dos Astronautas? Lição:
quem instalou foi a filha
do Francisco (o “Chicão”),
atropelado por moto.
Cabe aqui observação:
Nesse caso, o motoqueiro
tratou de se aproximar
da família do Chicão
e fez questão de ajudar
a instalar a bicicleta.
Celso, assim, foi exemplar.
Muita história pra contar
tinha o “Zuzu”, Josué:
mais de 80 anos de idade
e nunca ficava a pé
- a vida inteira usou bike,
pois nela botava fé.
Josué caiu por causa
de um buraco que não viu
na calçada e, já na pista,
um motorista o atingiu.
O SAMU foi acionado,
mas Josué não resistiu.
A calçada, por sinal,
ainda não foi nivelada,
mesmo tendo a prefeitura
sido já comunicada;
enquanto os buracos seguem,
a travessia é arriscada.
Contamos estas histórias
pra embasar questionamentos,
reflexões sobre a vida,
decisões e sentimentos:
queremos mobilidade
com afeto e sem lamentos.
Precisamos de um convívio
saudável dos motoristas
com pedestres, cadeirantes,
ciclistas, motociclistas;
com artistas dos semáforos,
ambulantes e skatistas.
O problema do transporte,
vemos, não escolhe idade
e o perigo invade todas
as regiões da cidade,
zona urbana e até rural,
em qualquer velocidade.
Na rede de amor e afeto
dos ciclistas vitimados,
seus parentes, seus amigos
não querem ficar calados.
Às vezes, duras verdades,
eles dizem, indignados:
– A prefeitura é bem rica
e pra tudo tem dinheiro,
mas “segurança no trânsito”
parece não vir primeiro.
Preferem ponte, que é cara,
mas rende bem a empreiteiro.
A infraestrutura urbana
não acolhe, é bem precária;
fazem pontes só pra carros,
sem visão humanitária...
Ciclovias mais seguras:
ISSO é obra necessária!
O uso racional dos carros
e das motos, minha gente,
mas principalmente o transporte
coletivo eficiente
ajudam toda a cidade,
pois preservam o ambiente.
Vão os ciclistas urbanos
vivendo suas mazelas
e percorrendo a cidade
por vias feias e belas,
rumo ao trabalho e ao estudo,
sempre nas suas magrelas.
A vida, enfim, segue em frente
com acertos e deslizes.
As ghost bikes já fazem parte
da paisagem: cicatrizes
que pedem calma e afeto
para dias mais felizes.
Monumentos à memória
para sensibilizar
ao cuidado coletivo:
precisamos despertar
e nossa cidadania
devemos exercitar.
Junto às bicicletas brancas,
cada palavra que é escrita
como homenagem à vida
faz com que a gente reflita
e esse carinho sincero
deixa a cidade bonita.
Preservação da memória:
cuidado e dedicação
de alguém da comunidade
fazendo a conservação
das bikes, do espaço público...
Isso aquece o coração.
Caminhos interrompidos,
vidas não mais invisíveis:
pela intervenção urbana,
histórias inesquecíveis
são assim retransmitidas
para cidadãos sensíveis.
Em meio ao caos da cidade,
a bike branca nos convida
a olhar pra cada ciclista:
“aqui pedala uma vida;
chega de mortes no trânsito”,
pede a alma comovida.
P ressa é coisa perigosa,
A prendemos e aceitamos;
U nidos é que ensinamos
L ição simples, poderosa.
O nde a vida é mar de rosa?
B om é viver consciente,
A ceitando o diferente,
R espeitando cada irmão,
J untando verso e canção
A o que dá sentido à gente.
Saiba mais sobre o tema deste cordel:
www.facebook.com/pg/ghostbikes/
ghostbikesjc.wixsite.com/fccr
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